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Crônica

Colégio Estadual Dinah Gonçalves
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O que é uma Crônica?
O cotidiano é feito, em sua maior parte, de banalidades, mesquinharias e irritações, esteja você em Paris ou em Barbacena. Observá-las, chamar atenção para elas por meio de linguagem escrita, transformando-as em breves momentos poéticos, é tarefa que requer distanciamento, capacidade de abstração, certa maturidade vivencial — trabalho de cronista, enfim, que resulta, como definem os teóricos, entre o conto e a poesia. (Bernardo Ajzenberg)
1. A origem da crônica
Já nas mais antigas civilizações conhecidas (Egito, Suméria, Assíria) aparece uma curiosa figura: o escriba. Sua função? Escrever, é evidente. Escrever o que e para quem? Estava a serviço do rei, faraó, ou pessoa de grande destaque na hierarquia dirigente. Fazia o registro de operações de compra e venda, uma contabilidade rudimentar, preparava dados biográficos de nobres e aristocratas, mas, principalmente, acompanhava seus chefes nas campanhas guerreiras, fazendo relatos de cada etapa, vitória, derrota ou conquista. Tais registros seriam lidos, ao retorno das andanças bélicas, pelos sacerdotes, para encantamento da população que mandara seus filhos ao sacrifício pela glória do supremo dirigente.
O que se pode deduzir de tais registros é que não passavam de uma espécie de “diário de campanha”, cuja fidelidade aos fatos era bastante duvidosa, já que se destinavam a elogiar e enaltecer o chefe. Essa tendência de muitos escritores se mantém até os dias atuais, refletindo o que diz esta antiga máxima: “Aos reis, como às crianças, é preciso enganá-los, para seu próprio bem”. Sintomaticamente, José de Alencar colocou esse provérbio na introdução de seu livro Crônica dos Tempos Coloniais, debaixo de um subtítulo: Advertência.
Aí está, com todos os seus vícios de origem, a primeira manifestação de um gênero que, depois, derivou para a crônica, ou para o diário e até para a autobiografia.
O que mais se aproxima, hoje, da atividade dos antigos escribas é, certamente, o noticiarista, encarregado de relatar os fatos do dia-a-dia, para jornais, rádios e televisões, sem acrescentar-lhes comentários.
O cronista de si mesmo
Outro tipo de cronista é o que dispensa o escriba e passa a relatar seus próprios feitos gloriosos. Exemplo típico foi Júlio César que, no livro De Beilo Galico (sobre a Guerra nas Gálias), contou sua saga para a posteridade. Foi bastante imitado, tanto assim que relatos desse tipo, assinados por grandes personalidades históricas, como o marechal Montgomery, o general von Rommell e outros, são freqüentes.
Se, por um lado, isso pode levar a distorções quanto à veracidade dos fatos, por outro, o receio de parecer ridículo, exagerado ou. até mentiroso deve ter contido, em muitos desses relatos autobiográficos, os impulsos de auto-exaltação. Pelo menos uma constatação tem sido feita: os historiadores não encontraram muitos fatos a contestar em tais crônicas de campanha.
O cronista a distância
O cronista pode também manter-se a distância dos fatos. É bem antiga essa forma de relatar. Já a encontramos em Homero que, com certeza, não esteve presente nos episódios que relatou. Mas sua forma de dizê-lo, embora em versos, é típica da crônica:

Fomos aí ter a magnífico porto, cercado ele todo de pedras íngremes, que nuas se erguem por ambos os lados.
Dois promontórios, em frente postados um ao outro, se encontram logo na entrada, salientes...


A linguagem é a mesma do cronista “testemunha ocular da História”, mas, evidentemente, muito de imaginação e de visão poética entrou na composição da Odisséia e da Ilíada.
Porém, um fato bem posterior e até recente comprova que, mesmo a distância, Homero procurava a fidelidade histórica. Tanto assim, que foi pela sua obra que se localizou o sítio onde outrora existiu a cidade de Tróia.
Cronista a distância também foi Fernão Lopes, o mais importante dos relatores portugueses da passagem da época medieval para a renascentista, pois ele escreveu e recompôs, com base em documentos pesquisados, a vida e os feitos de diversos reis de Portugal.
O fato de fazerem crônicas a distância aproxima-os muito do historiador, pois o fato histórico e sua análise se mantêm, perpetuando seus protagonistas.
É ainda José de Alencar quem nos conta como concebeu o livro Guerra dos Mascates:
Tornando ao gabinete, depois de uma manhã perdida, deu-me a curiosidade de examinar as antigualhas do embrulho (que lá fora deixado por um sacristão...) antes de mandá-las para o lixo. (...) Era o manuscrito de uma crônica inédita sobre a Guerra dos Mascates.
E assim nasceu o livro de Alencar, a partir de antigos alfarrábios deixados por algum cronista anônimo...
A crônica moderna
Na verdade, a crônica que chamaremos de moderna não é tão moderna e talvez não seja tão crônica...
Por exemplo: a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, relatando a descoberta do Brasil, não é uma carta. E uma crônica, no melhor dos estilos de “testemunha ocular da História”. Respeitou todas as técnicas da cronologia, com datas e até horários, descrevendo passo a passo os acontecimentos. Por outro lado, o autor faz comentários, aconselha, sugere, critica, tudo ao mesmo tempo.
Ora, essa miscelânea, quer de assuntos, quer de posições assumidas pelo cronista, é bem típica de uma vertente da crônica atual. Ela começa com pequenos tópicos, baseados em acontecimentos do dia e analisados ora jocosa, ora hurnoristicamente. Quase sempre mordaz, de vez em quando é poética, intimista, porque vai à intimidade do autor, geralmente personalidade famosa do mundo das letras, sobre quem o leitor quer sempre saber mais alguma coisa, de preferência íntima, particular, secreta. Um exemplo bem marcante é a crônica “Meu filho”, em que Vargas Llosa revela pormenores de sua vida familiar, de roldão com sua atividade mundana como integrante de júris cinematográficos.
Cronistas modernos

No Brasil, tal tipo de miscelânea teve grandes figuras: Viriato Correia, Humberto de Campos e seu Conselheiro XX, Álvaro Moreyra, João do Rio e, bem mais modernamente, Rubem Braga, Fernando Sabino, Rachei de Queiroz, Paulo Francis, Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Resende, Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro, Luís Fernando Veríssimo.

Mas há também tipos de crônica que se especializaram: a crônica política, como a que faz Carlos Heitor Cony e Alexandre Garcia; a esportiva, como a que fazia João Saldanha; a humorística, de Luís Fernando Veríssimo; a social, de Jacinto de Thormes; a gastronômica, de Sylvio Lancellotti; a econômica, de Joelmir Betting; e tantas outras.
A crônica, hoje, é abrangente, envolvente: abarca memória e profecia, presente e passado, literatura e polêmica, exaltação e condenação. Está livre dos senhores e mecenas, cada vez mais personalizada, refletindo muito mais o subjetivismo do autor do que o objetivismo dos fatos. E o cronista transforma-se em testemunha ocular de si mesmo.
2. Tipos de crônica
Como classificar uma modalidade tão maleável como a crônica? O que os textos geralmente têm em comum é a brevidade, a abordagem reflexiva e subjetiva do autor. Apenas a crônica narrativa pode não apresentar um posicionamento impressionista do narrador, atendo-se tão-somente aos fatos, à história criada.
Por isso, na classificação que ora apresentamos, as crônicas foram divididas considerando-se o procedimento textual predominante — o comentário, a narração, o lirismo e outros —, o que não elimina a mescla de procedimentos nem a impressão subjetiva exteriorizada pelo autor.
3. Crônica descritiva

Quando uma crônica explora a caracterização de seres animados e inanimados num espaço, viva como uma pintura, precisa como uma fotografia ou dinâmica como um filme, temos uma crônica descritiva. A captação impressionista, particularizada e conotativa dos elementos define a descrição subjetiva; a captação referencial, impessoal e denotativa define a descrição objetiva. O descritivismo é sempre veículo para reflexões numa crônica centrada na descrição.


O mato

Veio o vento frio, e depois o temporal noturno, e depois da lenta chuva que passou toda a manhã caindo e ainda voltou algumas vezes durante o dia, a cidade entardeceu em brumas. Então o homem esqueceu o trabalho e as promissórias, esqueceu a condução e o telefone e o asfalto, e saiu andando lentamente por aquele morro coberto de um mato viçoso, perto de sua casa. O capim cheio de água molhava seu sapato e as pernas da calça; o mato escurecia sem vagalumes nem grilos.
Pôs a mão no tronco de uma árvore pequena, sacudiu um pouco, e recebeu nos cabelos e na cara as gotas de água como se fosse uma bênção. Ali perto mesmo a cidade murmurava, estalava com seus ruídos vespertinos, ranger de bondes, buzinar impaciente de carros, vozes indistintas; mas ele via apenas algumas árvores, um canto de mato, uma pedra escura. Ali perto, dentro de uma casa fechada, um telefone batia, silenciava, batia outra vez, interminável, paciente, melancólico. Alguém com certeza já sem esperança, insistia em querer falar com alguém.
Por um instante, o homem voltou seu pensamento para a cidade e sua vida. Aquele telefone tocando em vão era um dos milhões de atos falhados da vida urbana. Pensou no desgaste nervoso dessa vida, nos desencontros, nas incertezas, no jogo de ambições e vaidades, na procura de amor e de importância, na caça ao dinheiro e aos prazeres. Ainda bem que de todas as grandes cidades do mundo o Rio é a única a permitir a evasão fácil para o mar e a floresta. Ele estava ali num desses limites entre a cidade dos homens e a natureza pura; ainda pensava em seus problemas urbanos — mas um camaleão correu de súbito, um passarinho piou triste em algum ramo, e o homem ficou atento àquela humilde vida animal e também à vida silenciosa e úmida das árvores, e à pedra escura, com sua pele de musgo e seu misterioso coração mineral.
E pouco a pouco ele foi sentindo uma paz naquele começo de escuridão, sentiu vontade de deitar e dormir entre a erva úmida, de se tornar um confuso ser vegetal, num grande sossego, farto de terra e de água; ficaria verde, emitiria raízes e folhas, seu tronco seria um tronco escuro, grosso, seus ramos formariam copa densa, e ele seria, sem angústia nem amo,; sem desejo nem tristeza, fone, quieto, imóvel, feliz.

(Rubem Braga)

Essa crônica descritiva constrói-se através da caracterização de seres e objetos, num cenário que vai da cidade à natureza. O texto apresenta o efeito estético do universo urbano definido sobretudo pela enumeração da cidade, com o recurso de assíndetos e polissíndetos reproduzindo os ritmos da cidade grande e da natureza. A linguagem do autor é impressionista: sua visão subjetiva dos elementos marca-se por inesperadas sinestesias (“telefone impaciente e melancólico”, “vida silenciosa e úmida das árvores”, “pedra escura com seu misterioso coração animal”).
4. Crônica narrativa
Menor que um conto e maior que uma piada, a crônica narrativa conta um episódio cativante cuja trama é leve e digestiva, envolvendo muita ação, poucas personagens e uma conclusão inusitada. O humor anedótico ou a crítica mordaz são os traços mais comuns da crônica narrativa. Geralmente, não há intromissão do narrador (digressões, comentários, apontamentos dissertativos).

Choro, veia e cachaça

Enterro de pobre sempre tem cachaça. É para ajudar a velar pelo falecido. Sabem como é; pobre só tem amigo pobre e, portanto, é preciso haver um incentivo qualquer para a turma subnutrida poder agüentar a noite inteira com o ar compungido que o extinto merece.
Enfim, a cachacinha é inevitável, seja numa favela carioca, seja num bairro pobre da cidade do interior; Foi o que aconteceu agora em Ubá (MG), terra do grande Ari Barroso.
Morreu lá um tal de 56 Nicolino, numa indigência que eu vou te
contar; Segundo telegrama vindo de Ubá, alguns amigos de 58
Nicolino compraram um caixão e algumas garrafas de cangibrina,
levando tudo para o velório. Passaram a noite velando o morto e
entornando a cachaça. De manhã, na hora do enterro, fecharam o
caixão e foram para o cemitério, num cortejo meio ziguezagueando e
num compasso mais de rancho que de féretro. Mas — bem ou mal — lá chegaram, lá abri rata a cova e lá enterraram o caixão.
Depois voltaram até a casa do mono, na esperança de ter sobrado alguma cachacinha no fundo da garrafa. Levaram, então, a maior espinafração da vizinha do pranteado 56 Nicolino. E que os bêbados fecharam o caixão, foram lá enterra,; mas esqueceram o falecido em cima da mesa.

(Stanislaw Ponte Preta)

A crônica de Stanislaw Ponte Preta é narrativa, pois conta uma breve história em tom humorístico, numa linguagem cotidiana, coloquial e intimista, com sabor tipicamente brasileiro.
5. Crônica narrativo-descritiva
Quando um texto alterna momentos narrativos com flagrantes descritivos, temos uma abordagem narrativo- descritiva. Dessa forma, as ações detêm-se para que o leitor visualize, mentalmente, as imagens que a sensibilidade do autor registra com palavras. O que se observa no texto assim qualificado é a predominância da sucessão de ações sobre as inserções descritivas.
Observe essas características na brevidade da crônica abaixo.

Brinquedos

Ora, uma noite, correu a notícia de que o bazar se incendiara. E foi uma espécie de festa fantástica. O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas pelo bairro todo. As crianças queriam ver o incêndio de perto, não se contentavam com portas e janelas, fugiam para a rua, onde brilhavam bombeiros entre jorros d’água. A eles não interessava nada, peças de pano, cetins, cretones, cobertores, que os adultos lamentavam. Sofriam pelos cavalinhos e bonecas, os trens e os palhaços, fechados, sufocados em suas grandes caixas.
Brinquedos que jamais teriam possuído, sonho apenas da infância, amor platônico.
O incêndio, porém, levou tudo. O bazar ficou sendo um famoso galpão de cinzas.
Felizmente, ninguém tinha morrido — diziam em redor. Como não tinha morrido ninguém? —pensavam as crianças. Tinha morrido um mundo, e, dentro dele, os olhos amorosos das crianças, ali deixados.
E começávamos a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras idades. De outros brinquedos. Até que um dia também desaparecêssemos, sem socorro, nós, brinquedos que somos, talvez, de anjos distantes!

(Cecília Meireles)

Nessa crônica de Cecília Meireles, alternam-se a narração — “Ora, uma noite correu a notícia de que o bazar se incendiara” —, a descrição — “O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas (...)“
— e a reflexão — “Até que um dia desaparecêssemos, sem socorro, nós, brinquedos que somos (...)“. O desenvolvimento narrativo-descritivo configura-se, pois, como um veículo para a reflexão. Submetido à linguagem poética, nesse hibridismo textual, o patético torna-se lírico.


Nudez

A filha tentava convencer a mãe a ir à praia e a velha resistia:
estava muito idosa e gorda para vestir maiô.
— Mas, mamãe, eu já vi de maiô, na praia, muitas senhoras mais velhas e mais gordas do que você!
E a velha suavemente:
— Eu também já vi. Por isso é que não vou.
Para mim, o critério dessa velha é o critério certo em matéria de nudez, O que é feio se esconde. Um moço, uma moça, no esplendor da juventude, seus belos corpos podem se mostrar praticamente desnudos, de biquíni, de sunga, de cavado: assim tão enxutos, rijos, tostados, chegam a ser castos. Predomina a impressão de beleza e saúde sobre a sugestão erótica. E, depois, sabe-se que aquela floração é tão transitória! Deixem que os jovens fruam o instante passageiro, que usem e mostrem os corpos na sua hora de flor antes que chegue a hora da semente e do declínio.
Afirmam os nudistas, com perfeita lógica, que, todo o mundo andando nu, a nudez acostuma e deixa de escandalizar: sim, acredito que num campo de nudistas se acabe vivendo com a mesma naturalidade que numa sala de famz7ia. Aliás, quem convive com índios sabe disso: o hábito torna a nudez invisível O que eu tenho contra os nudistas é a exibição obrigatória da feiúra humana, o seu despojamento total, a miséria fisiológica sem um véu que a disfarce. O ridículo, a falta de dignidade de todo o mundo nu.
Certa amiga minha, que, numa praia da Noruega, de repente se viu dentro de um grande bando de gente nua, diz que o seu choque primeiro não foi o da vergonha, foi o do grotesco. As pelancas, os babados, os rins flácidos, os joelhos grossos. A velhota magra com seus ossinhos de frango assado, a quarentona de busto murchinho, o senhor ruivo de barriga redonda, braços e canelas tão finos e peludos que, se tivesse mais duas pernas, seria igual a uma aranha. A matrona obesa e o seu esposo idem e o par de jovens rechonchudos, de mãos dadas como dois porquinhos enamorados. A seca donzela machona de coxas de cavalete, e a falsa Vênus de cintura grossa, com o falso atleta de torso enorme e pernas curtas. Da tribo toda, praticamente só se salvaram os adolescentes e as crianças.
A humanidade nua é feia, não há dúvida. E por isso mesmo a gente se oculta debaixo da roupa. Talvez mais do que para o defender do frio, a roupa se inventou para encobrir o corpo e lhe dar dignidade. O que é bonito se mostra, o que é feio se esconde, é a lei de todas as culturas humanas. Nada mais triste do que a deterioração do que foi belo. Ninguém usa no dedo um anel sem a pedra, ninguém bota na sala um ramo de flores murchas.

(Rachel de Queiroz)

Alternam-se nessa crônica diferentes processos textuais: a narração (com o recurso do discurso direto), a reflexão (através de digressões que formam um comentário sobre o assunto) e- a descrição (uma captação fotográfica da situação exposta). Enquanto a subjetividade opinativa assinala os comentários reflexivos, o humor pleno de sinestesias marca a irreverência descritiva.

6. Crônica lírica

Quando a nostalgia, a saudade e a emoção predominam, tentando traduzir poeticamente a linguagem dos sentimentos, a crônica é lírica.

Apelo

Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite pela primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada.
Toda a casa era um corredor deserto, e até o canário ficou mudo. Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam e eu ficava só, sem o perdão de sua presença a todas as aflições do dia, como a última luz na varanda.
E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero na salada o meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? As suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa, calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolhas? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor

(Dalton Trevisan)

No contexto da crônica, a ausente figura feminina presentifica-se por meio do impressionismo do autor. No lirismo nostálgico, está o predomínio das funções poética e emotiva da linguagem. A função conativa (o vocativo “Senhora”) reitera o título “Apelo”, sugere o destinatário, mas não o identifica, O texto ganha expressividade nessa indefinida mulher: o leitor é instado a supor a identidade da senhora ausente com a mesma intensidade com que supõe o motivo da ausência, e, dessa forma, identifica-se com as emoções do narrador.

7. Crônica reflexiva

Se a interioridade do autor projeta-se sobre a realidade que o cerca, interpretando-a e registrando-a através de conjecturas, inferências e associações de idéias, temos a crônica reflexiva.

Vitória nossa

O que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia?
Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos ser tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos, nem aos outros. Não temos nenhuma alegria que tenha sido catalogada. Temos construído catedrais e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e talvez sem consolo. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro que por amor diga: teu medo. Temos organizado associações de pavor sorridente, onde se serve a bebida com soda. Temos procurado salvar-nos, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de amor e de ódio. Temos mantido em segredo a nossa morte. Temos feito arte por não sabermos como é a outra coisa. Temos disfarçado com amor nossa indiferença, disfarçado nossa indjferença com a angústia, disfarçando com o pequeno medo o grande medo maior. Não temos adorado, por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fiui tolo”, e assim não chorarmos antes de apagar a luz. Temos tido a certeza de que eu também e vocês todos também, e por isso todos sem saber se amam. Temos sorrido em público do que não sorrimos quando ficamos sozinhos. Temas chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso temos considerado a vitória nossa de cada dia...

(Clarice Lispector)


Introspecção, reflexão e subjetividade são as marcas discursivas de dance Lispector. Seu texto é uma revelação dos questionamentos, anseios e comedimentos do homem. Sua linguagem rastreia as regiões abissais do inconsciente, onde estão os arquétipos do comportamento humano, as fobias e desejos, trazidos à tona por uma visão metafórica que traduz estados de alma.

8. Crônica metalingüística


Na crônica metalingüística, o autor volta-se para o ato de escrever, sob a forma de uma reflexão despretensiosa, de uma retrospectiva das primeiras experiências com as letras, de uma análise da palavra.
Crônica tem esta vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata de editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige de quem afaz o nervosismo saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou o comentário precisos que cobramos dos outros, O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial, e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a vadia ção de espírito. Claro que ele deve ser um cara confidvei, ainda na divagação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais do que isto seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo.
(Car)os Drummond de Andrade)


Nesse texto, identificamos a função metalingüística na interpretação do autor sobre o conceito de crônica e sobre os alcances da imaginação de um cronista ao cercar-se de episódios prosaicos. A fluidez de sua
linguagem leva a uma precisa definição de crônica, resultando num texto leve e cativante, típico de uma crônica sem pretensões jornalísticas ou literárias.

9. Crônica-comentário


Cercando-se de impressões críticas, com ironia, sarcasmo ou humor, a crônica-comentário resulta num texto cujo ponto forte são as interpretações do autor sobre um determinado assunto, numa visão quase jornalística.

De como não ler um poema

Há tempos me perguntaram umas menininhas, numa dessas pesquisas, quantos diminutivos eu empregara no meu livro A rua dos Cataventos. Espantadíssimo, disse-lhes que não sabia. Nem tentaria saber, porque poderiam escapar-me alguns na contagem. Que essas estatísticas, aliás, só poderiam ser feitas eficientemente com o auxilio de robôs1. Não sei se as menenininhas sabiam ao certo o que era um robô. Mas a professora delas, que mandara fazer as perguntas, devia ser um deles.
E mal sabia eu, então, que estava dando um testemunho sobre o estruturalismo o qual só depois vim a conhecer pelos seus produtos em jornais e revistas. Mas continuo achando que um poema (um verdadeiro poema, quero dizer), sendo algo dramaticamente emocional não deveria ser entregue à consideração de robôs, que, como todos sabem, são inumanos1. Um robô, quando muito, poderá fazer uma meticulosa autópsia — caso fosse possível autopsiar uma coisa tão viva como é a poesia.
Em todo caso, os estruturalistas não deixam de ter o seu quê de humano.. -
Nas suas pacientes, afanosas, exaustivas furungaçôes, são exatamente como certas crianças que acabam estripando um boneco para ver onde está a musiquinha.

(Mário Quintana)

O sarcasmo e a ironia revestem o texto de Mário Quintana. A opinião sarcástica fica por conta das apreciações irreverentes e irônicas e até pelo uso pejorativo do diminutivo “menininhas”. A visão crítica do poeta estende-se a considerações igualmente ferinas sobre as propostas estruturalistas.
1 lrreverência e ironia.
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